Osmar Moreira de Souza Júnior: O Futebol na pandemia

17-03-2021

O Futebol na pandemia

Já deixei de jogar futebol faz muito tempo. Não da pra colocar essa perda em minha vida na conta da pandemia do Covid-19, não me lembro qual foi a última vez que tive uma chuteira com travas para campo, mas deve ter mais de 20 anos já. Se sinto falta? Sinto sim, mas não a ponto de considerar que muito de minha vida perdeu o sentido por conta disso.

Sinto saudades de poder fazer parte de um projeto coletivo que se mobiliza para um objetivo comum com espaço e tempo delimitado, mas ao mesmo tempo sinto que já não consigo mais me manter indiferente às expressões de intolerância, desrespeito e egoísmo que se naturalizam de forma tão acintosa no universo do futebol.

Se antes eu me incomodava, mas não me revoltava quando um dos "malas" do jogo xingava ou criticava um companheiro de time por conta de um passe errado, de uma bola perdida, ou por ser driblado por um adversário, hoje me parece que não teria "estômago" para assistir calado a esse tipo de manifestação. Penso que deve estar ainda pior em tempos em que o fascismo saiu do armário sem qualquer pudor e chegou até a presidência da república.

A lógica da sociedade de mercado e da produtividade reproduzida nas quadras e nos campos de futebol é demasiada cruel para que essa prática social seja exercida como espaço de fruição.

Me sobra o futebol para assistir, mas não muda tanto. A mesma lógica impera em nossa condição de espectador. Torcer para um clube, implica quase que necessariamente em ser inimigo e intolerante com os seus rivais. Além disso, esse futebol enxarcado de valores capitalistas, patriarcais e racistas, me leva para um outro tipo de contemplação que não seja a da sociabilidade da desqualificação do outro para a lacração. Mesmo quando o futebol nos coloca em estado de fluxo, levando-nos ao êxtase pela conquista de um resultado extraordinário ou de um título, sinto que essa fruição não é plena. Tudo bem que meu time não tem me dado motivos para isso ultimamente no futebol masculino, mas no feminino tem e mesmo assim rola um sentimento estranho.

Em tempos de pandemia essa sensação de estranhamento tem sido ainda mais frequente, na medida em que o futebol passa a servir a um projeto de necropolítica e de circo sem pão, fazendo ressoar o discurso do tempo é dinheiro e do entretenimento, como cortinas de fumaça para que a escalada do autoritarismo continue de vento em popa. Tem algo de errado quando o ponto alto do meu futebol na pandemia tenha sido um pênalti perdido pelo Felipe Melo. Como já deixei claro, tenho tentado não entrar nessa armadilha da guerra entre torcidas, mas nesse caso o simbolismo de um bolsonarista protagonizar o fracasso do Palmeiras foi mais forte que do eu...

Me deixa desolado assistir às investidas pela manutenção do futebol mesmo com o colapso do sistema de saúde e o número de mortes diárias batendo na porta da casa das 3000. Tudo isso com a chancela de CBF, FPF e outras federações e o apoio de dirigentes de clubes como o Flamengo, treinadores como Renato Gaúcho e jogadores como Felipe Melo.

Em alguma medida temos assumido o futebol como um teatro da vida e, assim como em outras instâncias da sociedade, a pandemia parece ter tornado ainda mais didática a exposição desse teatro, os grandes clubes, as grandes ligas, os jogadores popstars foram impactados de que forma pela crise pandêmica? Neymar fazendo balada particular, Gabigol frequentando cassino na quarentena parecem nos ajudar com as respostas. Assim como os milionários em geral essa elite do futebol tem sido mantida blindada da depressão causada pela crise e, muitas vezes, têm crescido economicamente.

Quando se defende a ideia de que o futebol profissional não pode parar, partindo do pressuposto de que vive em uma bolha asséptica na qual são cumpridos protocolos que supostamente garantiriam proteção aos atletas, deixa-se de falar da impossibilidade dessa "bolha" se desassociar da humanidade e do mundo de uma forma geral. O atleta profissional até pode ser mais resistente à ação do coronavírus, mas o mesmo não se pode falar das pessoas que convivem com esses jogadores em seus dias a dias.

O líder indígena, ambientalista e jornalista Ailton Krenak em seu texto intitulado "O amanhã não está à venda" nos alerta para a necessidade de assumirmos nossa responsabilidade pela vida, que é nosso bem mais precioso, tomando consciência de que não existe uma humanidade alienada da Terra. Em analogia podemos dizer que não existe o futebol alienado da sociedade.

Pego ainda no texto de Krenak, quando o autor resgata uma das incontáveis declarações insensatas do presidente Jair Bolsonaro que banaliza a vida ao afirmar que "alguns vão morrer" por conta da pandemia e tudo bem, isso faz parte da vida. Segundo Krenak, "alguém que fala isso está pronunciando uma condenação, tanto de alguém em idade avançada, como de seus filhos, netos e de todas as pessoas que tem afeto uns com os outros. Imagine se vou ficar em paz pensando que minha mãe ou meu pai podem ser descartados. Eles são o sentido de minha vida. Se eles podem ser descartados, eu também posso". A vida não pode ser equiparada à economia e descartada pela lógica da produtividade e consumo. Quando o futebol aceita jogar esse jogo sem questionar suas regras torna-se o necrofutebol.

Me cansei desse futebol, o futebol que me encantou nessa pandemia foi o futebol de LGBTs. Não foi um jogo que tenha assistido, mas conhecer essa experiência de resistência pelo futebol de pessoas trans, gays, lésbicas etc. O futebol que eu quero pra mim como espectador ou como praticante é esse no qual o torcedor pode expressar sua sexualidade sem correr riscos e o jogo em que os times não são segregados pelo marcador sexual.

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